A cultura moderna ocidental é
historicamente marcada por narrativas acerca da falência da razão no que diz
respeito à sua capacidade de sustentação de crenças e de valores que orientem
os seres humanos no mundo e na sociedade. Essa crise não deixa de estar ligada
ao fenômeno recente da pós-verdade, insuflada dentro do âmbito da internet
e assimilada por essa nova onda conservadora no Brasil e em outros países.
Neste contexto, não importa tanto o quanto você esteja racionalmente justificado
a defender uma crença, mas o quanto de seguidores você é capaz de aglutinar em
torno dela: sua verdade ou sua falsidade tornou-se tão somente uma questão
secundária ou até mesmo supérflua.
Esse quadro reforça que o
ambiente da pós-verdade se retroalimenta de situações propiciadas pelas redes
sociais de compartilhamento de ideias e notícias, muitíssimas vezes pouco
embasadas ou mesmo mentirosas, embora com bastante potencial de serem seguidas
por um grande número de usuários da internet. Mas o que
precisamente esse fenômeno da pós-verdade tem a ver com a fé religiosa? O
ponto é bastante simples: notícias inventadas, tomadas como verdadeiras, tendem
a ofender ou incitar emoções de pessoas que comungam de determinada crença
ou valor.
Neste contexto, o apelo às
emoções e às crenças se sobrepõe ao compromisso com fatos ou provas. Disso
resulta uma fissura entre fé e razão, na qual as redes sociais formam um
ambiente fértil para a disseminação de concepções políticas assaz conservadoras
aliadas a fé religiosa, de modo que posições racionalmente embasadas - não
necessariamente progressistas - são amiúde desprestigiadas em prol de
preconceitos arraigados na sociedade. Consequentemente, a fé
religiosa torna-se não só um alvo, mas também um poderoso instrumento para
disseminação de fake news e de formação dos "ciber-rebanhos".
Não obstante, não devemos, com
isso, reforçar o ponto de vista de que a fé seja inconciliável com o lado
racional do ser humano. Pelo contrário, um bom contraexemplo a essa noção é que
uma das características mais importantes da teologia católica, desde o medievo,
está no modo de tomar a razão como base de sustentação da própria fé religiosa.
O que é, por conseguinte, inteiramente diferente de enxergar os produtos
genuínos da razão como coisas quase que estritamente vinculadas à técnica
e à ciência, reduzindo a religião - e também outros saberes
não-científicos - ao total irracionalismo.
O que realmente ocorre não é
que os religiosos tenham exatamente ficado mais ferrenhos ou fundamentalistas.
Pelo contrário, não se pode deixar de considerar que subjaz em boa parte das
posições conservadoras ou reacionárias princípios que, muitas vezes, estão mais
próximos do secularismo do que da própria religião. Nestes casos, a
religiosidade é vista como algo assaz distante do conhecimento
científico-filosófico e amiúde associada a valores anacrônicos à sociedade
atual. Mas isso é apenas uma caricatura grosseira que, de um lado, vincula
a religião ao obscurantismo e, de outro, enxerga o saber científico-filosófico
como um conhecimento privilegiadamente racional. Com isso, muitos religiosos
vestem a carapuça criada pelos seus próprios detratores, ao ver a si mesmos
através de preconceitos seculares. Sem, no entanto, considerar que fé e razão,
por meio de um esforço cognitivo e prático, poderiam se complementar de forma
mútua.
A razão dessa caricatura
grosseira prevalecer - esse crente existencialmente cindido entre sua fé e seu
lado racional - é que culturalmente aceitamos que os produtos da razão humana
quase sempre contradizem o que diz a religião e pouco nos preocupamos em formas
de conciliação entre ambas. Pessoas religiosas, assim como não-religiosas, nem
sempre têm condições de estarem imunes a essas narrativas tão amplamente
difundidas. Não obstante, a história nos ensina que a fé desamparada de
bases racionais amiúde abre espaço para posições fundamentalistas; ao passo que
a razão impetuosa, fria e calculista, leva os seres humanos a cometerem
atrocidades tão vis quanto a que vemos hoje em dia por parte de grupos
fanáticos e extremistas. Portanto, onde as contradições entre fé e razão
são quase sempre agravadas e reforçadas, onde posições preconceituosas e
intolerantes proliferam de modo a não só contaminar o debate público, mas
também o próprio bem-estar social, é sempre importante que estejamos bem
precavidos para buscarmos meios de mitigar a fé com base na razão e
vice-versa.
Dentre outras coisas, isso significa evitar seguimentos ou grupos
sectários na internet que aparentemente defendem aquilo que acreditamos, mas
sem qualquer crivo, base factual ou refinamento argumentativo. Por conseguinte,
é preciso sopesar que, naquilo que compartilhamos em nossos grupos sociais, não
esqueçamos que a verdade é um valor fundamental que não pode simplesmente ser
escapado por nós. Não estou evidentemente me referindo aos que afirmam
dogmaticamente suas respectivas crenças ou valores como se fossem verdades
absolutas, mas sim aqueles que recorrem à razoabilidade da dúvida e a um certo
ceticismo sempre que necessário - e, portanto, ainda presam e zelam, de fato,
pela verdade.
Há muita fé no ato de ver o mundo como o ele é, dispensando o viés das nossas necessidades emocionais, como faz um racionalista. Há muito desespero na fé de quem precisa romper com o mundo e criar uma outra realidade para para habitá-lo. A existência segue repleta de contradiçoes e rupturas para ambos.
ResponderExcluirTendo a concordar
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