Há diferença entre pseudociência e saberes não-científicos?

O Xamã - Jaider Esbell

Penso ser um tanto problemático quando um epistemólogo pede para leigos terem total confiança na ciência e, se for preciso, abdicar de suas crenças diárias em favor do que dizem especialistas. A rigor, se uma pessoa é total ou parcialmente leiga, em ambos os casos, chegará ao ponto que não saberá distinguir corretamente o que é ou não científico, ou distinguir um especialista qualificado de um mero charlatão. A submissão cega à autoridade da ciência ou naqueles que falam em nome dela pode ser um tiro no pé de quem não tem critérios adequados para avaliar quando uma informação é falsa ou verdadeira. 
Nem mesmo um especialista pode dispor sempre destes critérios, uma vez que as especialidades são variadas e, por vezes, podem adotar linguagens e procedimentos muito diferentes umas das outras.
Portanto, de longe, não é difícil notar algo de errado neste discurso assaz cientificista, na medida em que pode ser facilmente usado por grupos interessados em enganar ou manipular leigos, vendendo crenças falsas como se fosse ciência. Aliás, isto parece ser o caráter destes grupos negacionistas: eles percebem as lacunas existentes entre o cientista e o leigo, quer dizer, entre o testemunho do cientista e o grau de incerteza de uma pessoa comum que, algumas vezes, é coagida a aceitar cegamente aquilo que um especialista disse ou prescreveu (como, por exemplo, um médico).
Por um lado, é importante que estejamos, com frequência, atentos para esses discursos que visam beneficiar certos grupos que ganham com a manipulação de massa. Por outro, não se pode ignorar a existência de saberes não-científicos socialmente compartilhados que funcionam bem sem o aval de cientistas ou especialistas. Como, por exemplo, os saberes medicinais e agroecológicos cultivado por grupos indígenas brasileiros. A propósito, tais saberes podem ser confundidos com pseudociência ou mesmo serem usados inadequadamente por charlatões. Por isso, é importante a melhor divulgação destes saberes e um estudo adequado sobre eles. 
Além disso, boa parte do que chamamos de científico não passa de um discurso eurocêntrico e colonial, sobretudo, quando usado por entusiastas cientificistas, ao invés de legítimos especialistas. Vale dizer que a ideologia cientificista é um modo de pensar a realidade baseado em concepções estritamente ocidentais sobre o que é a verdade e o conhecimento científico, mas não necessariamente segue os resultados das ciências (assim, no plural). Ao contrário, muito das vezes o cientificismo ultrapassa bastante o que podemos afirmar em paralelo com os cientistas, servindo antes de pretexto retórico para tomada de decisões de cunho meramente político-econômico ou ideológico.  
Sob esse padrão, formas periféricas de pensar e agir no mundo são equivocadamente reduzidas ao falso e ao ilegítimo. Não ocupar os institutos de pesquisas ou estar fora do centro de produção do conhecimento, ou mesmo não seguir genuinamente os padrões impostos destes lugares, não significa necessariamente estar produzindo pseudociência ou mesmo ser um negacionista.
A existência de saberes cultivados por grupos humanos em todas as épocas e lugares do mundo é uma evidência que não pode ser ignorada a respeito de que há muitos saberes relevantes fora do escopo e do domínio da atividade científica. Além disso, o próprio senso comum detém, por exemplo, um significativo repertório de crenças fáceis e simples que não requerem qualquer aval de especialistas, como por exemplo que "o sol nascerá amanhã" ou que "todos os homens são mortais". Ninguém, em sã consciência, discordaria que tais crenças são, em um sentido relevante, verdadeiras. Aliás, Thomas Reid, filósofo escocês do século XVIII e pai fundador da escola de filosofia do senso comum, certamente diria que tais crenças correspondem a verdades autoevidentes. Inclusive, podemos afirmar que os próprios cientistas não contestam tais verdades e não chegam sequer pô-las em dúvida  (diferentemente de certos filósofos que chegam até mesmo duvidar da própria existência do mundo fora da mente). Não obstante, apesar de ninguém duvidar seriamente de tais crenças ordinárias, a própria história da filosofia oferece um significativo registro da importância delas para a elaboração do pensamento científico (como, no caso, de Hume e de Aristóteles).
Com isso, quero chamar atenção para o seguinte ponto: assim como julgamos importante o combate ao negacionismo da ciência, talvez seja igualmente útil não ignorarmos o negacionismo da não-ciência e entendermos melhor a importância e a utilidade destes saberes que estão fora do escopo da produção científica moderna, mas que não deixam de ser, por isso, úteis ou mesmo significativos aos seres humanos.

Por Wendel de Holanda

Comentários

  1. Saber Empirico não é, aparentemente, distinto desse tipo de Negacionismo em tempos de Fascismo?

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    1. Não estou considerando que saberes não-científicos se caracterizam sobretudo como empíricos, em distinção ao saber das ciências. Aliás, a ambiguidade do termo "empírico" é bastante problemática.

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