A falácia do militante total

Michel Foucault

Neste post, irei comentar um pouco sobre o que chamo de "falácia do militante total" e suas implicações nas práticas políticas ordinárias, para além das institucionais. Nomeio também essa falácia de "engodo foucaultiano" justamente porque está baseada num falso argumento vulgarmente atribuído ao filósofo francês Michel Foucault cuja premissa é que "tudo (na sociedade) é relação de poder" e daí se conclui que "tudo é política". 
Porém, antes de comentar especificamente sobre esse falso silogismo, irei fazer algumas considerações iniciais.

I

Há alguns milênios atrás, diria Aristóteles que o ser humano é um animal político, visto que seu domínio de vida é a "pólis", isto é, palavra grega amiúde traduzida como cidade. Do termo "pólis", os gregos criaram a palavras "politikós" para designar aqueles que vivem na pólis (isto é, nas cidades gregas). Portanto, é do termo "politikós" que se deriva a palavra "política" tal qual usamos hoje em dia para designar o que muitos autores clássicos chamariam de "arte de governar".
Há também um sentido público naquilo chamamos de "política". Por essa razão, há ressalvas em dizer que um "bom político" é equivalente a um "bom gestor", pois, no segundo caso, não há necessariamente uma referência ao âmbito público onde a política é, de fato, exercida.
Ao contrário, mede-se um "bom gestor" tão somente pela sua eficiência e utilidade para os propósitos particulares de uma determinada corporação. Não obstante, a política já inicia-se pela disputa dos propósitos ou das finalidades através de grupos políticos antagônicos. Portanto, é verdadeiro que, em nossas sociedades modernas, a política acontece em meio a interesses diversos e até contraditórios entre si.

II

Dito isso, agora passemos para nossa questão inicial que diz respeito a "falácia do militante total", tal como se dá no seguinte silogismo:

[1] Tudo (na sociedade) é relação de poder;
[2] A relação de poder é política;
[3] Logo, tudo é política.

1. Comecemos com a premissa maior "Tudo é relações de poder": 

Será mesmo que tudo na sociedade se reduz a uma "relação de poder"? Evocamos aqui Popper no que diz respeito a um tal enunciado aparentemente irrefutável, visto que não só explica, como também explica até demais. E talvez aí esteja o real problema da sua formulação.
Ora, partindo da premissa de que "tudo é uma relação de poder", posso perfeitamente interpretar qualquer acontecimento, mesmo aqueles contraditórios entre si, com base nessa hipótese. 
Por exemplo, se digo que "Amélia é muito maltratada pelo marido". Posso perfeitamente inferir daí que, para maltratar Amélia, o marido dela precisa exercer algum tipo de poder sobre ela. 
Se, pelo contrário, digo que "Amélia é muito bem-tratada pelo marido", posso perfeitamente também inferir daí que o marido dela exerce algum tipo de poder sobre ela. Mas, neste segundo caso, acrescenta-se que o marido da Amélia opera ardilosamente para influenciá-la no sentido de manter o poder sobre ela e, por isso, costuma tratá-la muito bem (ainda que, supostamente, com más intenções).
Assim, para o "militante total", em ambos os casos, sempre haverá uma "relação de poder".  Todavia, tal enunciado "tudo é uma relação de poder", ao explicar tudo, também não oferece nada realmente de substantivo sobre a realidade. Ao contrário, trata-se de uma ideia demasiado vaga que se acomoda a qualquer estado de coisas.

2. Agora, passemos para premissa menor "a relação de poder é política":

Como notei acima, a palavra "política" deriva do termo grego "pólis" que significa cidade, enquanto que a palavra "poder" deriva do termo latino "possum" que significa “ser capaz de”. Por conseguinte, são termos que etimologicamente não tem diretamente ligação um com outro. Ao contrário, o termo latino para política é "politicus". Por conseguinte, não há qualquer associação direta possível entre "política" e "relação de poder".
Quando pensamos em "relações de poder", muitas das vezes estamos pensando em relações de dominação e de subordinação, isto é, relações em que alguém consegue se sobrepor ao outro a partir de alguma capacidade (ter mais dinheiro, força, inteligência, idade, conhecimento etc.).
Mas essa noção de poder é até contrária ao sentido original de política, através do qual se supõe uma relação entre iguais e não de desigualdade. Aliás, este é o sentido, por exemplo, do sufrágio universal: mesmo numa sociedade desigual, o voto de cada cidadão tem o mesmo peso, não importa se é rico ou pobre, homem ou mulher, negro ou branco, etc.
É óbvio que podemos argumentar que nossas sociedades modernas são diversas e tal política entre iguais seria uma noção completamente inverídica, visto que não corresponde à sociedade existente. Bastaria, por exemplo, ver o Brasil tal como é para facilmente chegarmos à conclusão de que não existe uma tal igualdade. 
Não obstante, o propósito da política é justamente este: fazer com que os cidadãos, em sua diversidade, tenham certas garantias e direitos iguais. Não é um plano dado, mas é um plano artificial: é o propósito da política.
Em outros termos, o propósito da política é justamente seguir num sentido inverso das meras "relações de poder" existentes na sociedade. Porém, isto não significa que a política não lida com tais "relações de poder". Ao contrário, a política está a todo momento ocupando-se daquilo que diz respeito a certas relações de poder na sociedade, muito embora jamais se confunda com elas.

3. Por fim, examinemos a conclusão "Tudo é política":
 
Ora, assim como não estamos suficientemente autorizados a concluir que a "política" é estritamente "relações de poder", muito menos podemos inferir daí que "tudo é política". Ainda que seja trivial dizer que tudo na sociedade está de algum modo relacionado com outra coisa é, porém, muito difícil daí concluir que todas essas relações são necessariamente "relações de poder". Há muitos tipos de relações que podemos ter na sociedade e, portanto, jogar tudo no mesmo pacote é um reducionismo pueril.
Dito isso, afirmar que tudo é política é querer ser incansavelmente um militante em todas as situações. O que resulta numa personalidade um tanto inconveniente e inoportuna. Por isso, devemos ser cautelosos com nossas "micropolíticas". Aliás, a internet cria a falsa ideia de que participamos mais da política quando apenas nos tornamos mais engajados a crenças e emoções algoritmicamente atiçadas.

Conclusão: 

Deste falso silogismo decorre uma série de problemas, dentre eles, uma visão totalitária do conceito de militância, isto é, que deveríamos militar 24h em nossas vidas, que o plano moral e político se entrecruzam e se confundem. Não havendo mais espaço, no âmbito da vida privada, para a reflexão, para a dúvida e para a incerteza, já que precisamos estar sempre certos e convictos o tempo inteiro, sem jamais vacilar.
Ora, a política é apenas uma das atividades fundamentais dos seres humanos e, por isso mesmo, não é desejável que tal ocupação, ainda que inegavelmente importante, invada todos os espaços da vida humana. Por isso, nunca é demais recomendar àqueles jovens obstinados: "descança militante!".





Comentários

  1. Otimo texto! Toda vez que eu duvidava de algo a resposta vinha em seguida...


    Acho que às vezes temos que "baixar a guarda", acolher, pra daí fazer política... parece que eu toco mais o 💜 de quem eu permito q seja quem quiser do meu lado, do que qndo eu era uma militante incisiva, que não descansava....
    O desafio é esse, sabe a hora de deixar passar, a hora de se levantar, e a mistura disso em outras ocasiões, tipo, se levantar mas com suavidade...
    Difícil porém

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  2. Parece que a febre foucaultiana ainda aquece o coração dos militantes. Minha interpretação dessa condição (política e poder), penso, perpassa a dimensão discursiva. Por mais que tenhamos essa compreensão do sentido de polis, de política e de poder, não são esses sentidos que circulam nas práticas sociais/institucionais. Lembra do segundo wittgenstein, ou o próprio Bakhtin? Meio que começa com eles esse entendimento do sentido/contexto. Então, a explicação proposta no artigo é bem conduzida pela hipótese da falácia, de fato. Eu gosto de pensar nos motivos pelos quais o sentido de política passou a estar diretamente relacionado com o de poder (e não que ambos os conceitos sejam equivalências, mas porque passaram a serem enunciados como tal?). Deixo aqui minha sugestão para um novo artigo. Forte abraço!

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    1. Talvez a força política dos partidos ou dos grupos seja confundida com a própria política. Algo que esqueci de analisar no texto. Fica pra próxima.

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  3. Percebo que, dentro de uma visão mais sincrônica, não descartando a visão diacrônica que leva em conta a origem histórica da palavra, a palavra política foi com o tempo se aproximando da palavra poder, no sentido de que política passou a ter muito o significado de gestão, governo, não necessariamente de bens públicos. Assim, sendo o poder a capacidade de influenciar, para ser um bom gestor ou político, imprescindível é que tenhamos alguma capacidade razoável de influenciar as pessoas, exercício de poder.

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  4. As vezes essa capacidade de influenciar é realmente confundida com a atividade essencialmente política.

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