Uma filosofia indígena do Alto Rio Negro

João Paulo  na região do Alto Rio Negro, no Amazonas
(Foto retirada do site Amazônia Real/Alberto Araújo)

Este artigo, recém publicado na ANPOF, é uma breve resenha do livro “O mundo em mim: uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no Alto Rio Negro”, escrito pelo antropólogo indígena João Paulo de Lima Barreto, publicado no ano de 2022 pela Editora mil folhas, de Brasília. Na obra, o autor explora a noção de corpo a partir da perspectiva dos indígenas Yepamahsã, que habitam a região do Alto Rio Negro, no noroeste do Estado do Amazonas, Brasil. Seguindo a linha de raciocínio do intelectual quilombola Negro Bispo, o livro pode ser considerado uma obra de inspiração contracolonial, já que se baseia no próprio pensamento indígena e no conhecimento medicinal dos povos da região amazônica para abordar o conceito de corpo.
Este é o segundo livro de João Paulo Lima Barreto, que também faz parte do povo Yepamahsã (Tukano) do Alto Rio Negro. O livro é fruto da sua pesquisa de doutorado, que foi selecionada pela Capes como a melhor tese de Antropologia e Arqueologia do ano de 2022. Seguindo uma perspectiva de antropologia inspirada em Bruno Latour, João Paulo de Lima Barreto explora a medicina indígena do Alto Rio Negro usando termos que ele considera os mais apropriados para descrever as práticas de cura da região. Ele quer desassociá-las dos estereótipos negativos que têm sido atribuídos a esses povos ao longo da história. Por essa razão, seu trabalho é um esforço de contracolonização do pensamento, ao oferecer uma nova interpretação das práticas de cura indígenas, a partir do próprio pensamento indígena.
Ele aponta que, muitas vezes, os termos usados para descrever essas práticas, como feitiçaria, benzimento, magia, bruxaria, entre outros, carregam conotações negativas e preconceituosas que distorcem o verdadeiro significado do conhecimento dos povos indígenas.
Barreto começou a se interessar por estudar a medicina indígena do Alto Rio Negro para sua tese de doutorado, que acabou se tornando o livro que estamos discutindo, lá em 2009. Isso aconteceu quando a sobrinha dele foi picada por uma cobra jararaca e os médicos do hospital queriam amputar o pé dela. Mas sua família, que eram indígenas Yepamahsã, discordaram totalmente. Eles disseram que tinham conhecimentos médicos tradicionais que tornavam a amputação desnecessária. Argumentavam ser possível tratar a mordida da cobra com remédios tradicionais, sem descartar o tratamento biomédico convencional. Mas os médicos não deram bola para o que os Yepamahsã estavam falando, então os indígenas não puderam usar seus próprios métodos de cura, mesmo com tudo isso sendo legal na Constituição brasileira.
Como observado por João Paulo de Lima Barreto, nos arredores do Alto Rio Negro, os indígenas Yepamahsã praticam o bahsese, que são essencialmente tratamentos orais e medicinais baseados em seus conhecimentos ancestrais. Em geral, aqueles que dominam essas técnicas de cura são chamados de kumu, pessoas que passaram a vida inteira se preparando para se tornarem especialistas, ou, em outras palavras, pajés (xamãs). Os indígenas só conseguiram levar a menina para outro hospital para realizar esse tratamento depois de uma intervenção do Ministério Público. Após um mês de tratamento combinando o bahsese com acompanhamento médico, a perna da menina estava totalmente curada e ela pôde voltar para casa. Enquanto os médicos estavam hesitantes, os indígenas Yepamahsã estavam certos de que suas práticas de cura seriam eficazes. No entanto, como destacado por João Paulo de Lima Barreto, é comum associar essas técnicas indígenas à magia, feitiçaria, benzimento, etc., contrastando com o conhecimento científico hegemônico. Isso indica que esses preconceitos têm raízes profundas e não podem ser considerados como casos isolados na sociedade.
Esse caso angustiante mostra por que é muito importante que as pessoas no Brasil entendam melhor as práticas dos povos indígenas, não só as relacionadas à medicina. Por essa razão, essa situação em particular envolve algumas questões de injustiça epistêmica. Tal injustiça acontece quando o preconceito faz com que o ouvinte dê pouca credibilidade à palavra do falante, tendo em vista os escassos recursos interpretativos existentes na sociedade brasileira que coloca os indígenas em desvantagem quando se trata de dar sentido aos seus relatos ou experiências. Assim, a injustiça ocorrida com os indígenas Yepamahsã é decorrente de uma carência hermenêutica em nossa sociedade, proveniente de uma sistemática e reiterada negação dos seus saberes, particularmente ligada aos preconceitos arraigados socialmente contra os povos indígenas.
Por isso, uma forma eficaz de lidar com essa injustiça é reduzir as lacunas interpretativas com relação ao conhecimento tradicional dos povos originários. Parece que esse é exatamente o objetivo do antropólogo indígena João Paulo Lima Barreto, cujo seu novo livro surge como uma ferramenta importante para contracolonizar e preencher essas lacunas persistentes em nossa sociedade. Além disso, os temas abordados em sua obra são relevantes para melhorar os cuidados de saúde para as comunidades da Amazônia, respeitando seus modos de vida. Isso não é apenas porque é exigido pela lei brasileira, mas também porque reconhece a possibilidade de complementaridade entre diferentes formas de conhecimento no processo de cura.
Parece desnecessário dizer que o conhecimento indígena sobre o corpo não se encaixa nos moldes da biologia e da biomedicina. De fato, hoje parece não ser tão dramático afirmar que o conhecimento tradicional possui seus próprios pressupostos ontológicos e epistêmicos. O esforço de João Paulo de Lima Barreto em seu livro é justamente nos apresentar quais são esses pressupostos e porque eles estão diretamente ligados ao conhecimento medicinal indígena da região do Alto Rio Negro.
Por isso, sugerimos a leitura deste livro interessante, que surgiu de uma tese premiada em nível nacional. Ele nos oferece um vislumbre da sabedoria do povo Yepamahsã e da região do Alto Rio Negro, apresentando o pensamento indígena através da própria voz indígena. Este livro é rico em detalhes sobre o pensamento da região, não apenas esclarecendo conceitos já abordados em obras anteriores como "Waimahsã: peixes e humano" (2018), mas também pela eficácia das abordagens metodológicas e etnográficas que resultaram em uma descrição profunda e rica do conceito de corpo para os povos indígenas do Alto Rio Negro. É importante destacar que o livro de João Paulo de Lima Barreto, “O mundo em mim: uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no Alto Rio Negro”, é uma ferramenta de contracolonização. Ele visa preencher as lacunas interpretativas sobre a forma de pensar dos indígenas, lacunas essas que ainda persistem na sociedade brasileira.


Por Wendel de Holanda P. Campelo

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