Conhecimento tradicional: pseudociência ou ciência que abusamos?



A pílula de alho
Da planta antibiótica
Da velha medicina
Que desenvolvimento
Que lindo ensinamento
A pílula de alho ensina

(Gilberto Gil, Pílula de Alho)

Em muitas de suas canções, como “Queremos saber”, “A ciência em si”, “Pílula de alho”, “Jurubeba”, “Umeboshi”, Gilberto Gil explora temáticas filosóficas a respeito do conhecimento, da ciência e da tecnologia na vida humana, além de incluir os saberes populares no cerne de suas preocupações. Ao contrário do que se poderia supor, trazer à tona o conhecimento dos povos tradicionais não é meramente uma excentricidade artística de Gil.
Embora não tão comum, penso que há muitas boas razões para examinar o conhecimento dos povos tradicionais de um ponto de vista epistemológico, para além do currículo hegemônico da filosofia da ciência. Esse conhecimento engloba um conjunto de técnicas e procedimentos de manejo autossustentável de recursos genéticos, no qual o Brasil se destaca em dois aspectos: (1) o país possui a maior biodiversidade entre os 17 países mais megadiversos do planeta  ; (2) e, além disso, é habitado por uma expressiva população de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, seringueiros, pescadores que empregam diferentes técnicas autossustentáveis de manejo dos recursos genéticos, como práticas agrícolas, alimentares, medicinais, pesca, caça, entre outras. Isso evidentemente confere ao conhecimento desses povos, entre outras coisas, uma destacável importância estratégica para o Brasil (Cunha, 2018).
Todavia, como nota Almeida (2013, 2021), tais conhecimentos vernaculares são, na maioria das vezes, reduzidos a meras crenças culturais que, em grande medida, faz com que ignoremos ou desqualifiquemos a cientificidade ligada a esses saberes. O efeito imediato disso é que, se tal conjunto de conhecimentos são meras crenças culturais, então não estariam, por isso mesmo, no mesmo escopo das verdades científicas que produzimos dentro das universidades ou centros de pesquisa. Todavia, essa afirmação logo cai por terra quando começamos a realmente entender que o trabalho cognitivo desenvolvido dentro das instituições científicas depende, muito das vezes, diretamente do trabalho cognitivo realizado fora dessas mesmas instituições.
Explico-me: pode parecer um tanto trivial afirmar que o trabalho científico não é meramente resultado do esforço estrito dos cientistas, mas não porque isso envolve somente uma cadeia produtiva que não é propriamente científica - como das trabalhadoras que cuidam da limpeza do laboratório ou do preparo do almoço. Mas há também um trabalho que ocuparia uma zona cinzenta mais ou menos entre aquele serviço da senhorinha da limpeza e aquele propriamente científico. Portanto, são agentes que colaboram mais diretamente no resultado do trabalho cognitivo, uma vez que desempenham papéis imprescindíveis em certas etapas da pesquisa que, sem seus respectivos protagonismos, todo o processo seria simplesmente impossível.
No contexto amazônico, por exemplo, o trabalho do mateiro é aquele de quem não apenas guia o botânico ou o paleontólogo em meio à mata fechada durante o dia ou a noite, mas, boa parte das vezes, é também de quem realmente detém um profícuo conhecimento a respeito da fauna e da flora da região. Neste sentido, não é raro que cientistas que vão à Amazônia precisem do serviço de pessoas que verdadeiramente conhecem a floresta, a fim de viabilizarem sua própria pesquisa científica. 
Em outros termos, o que está em jogo com relação ao ofício do mateiro é que seu conhecimento a respeito da megadiversidade genética da Amazônia tem sido fundamental para o trabalho científico hegemônico. No entanto, embora imprescindível, o trabalho do mateiro continua subvalorizado pelas instituições científicas que o exploram, no sentido de que sua contribuição tem sido reiteradamente apagada dos resultados das pesquisas que ajudou desenvolver, como se nunca tivesse existido. Esse é o lado invisibilizado da divisão do trabalho cognitivo. Sem dúvidas, isso ainda não é, de longe, o pior caso.
Nunca é tarde para lembrar que a história nos mostra que o colonialismo científico que explora o trabalho de algum mateiro ou de algum pajé não é um acontecimento meramente isolado ou pontual. Ao contrário, nossas instituições científicas sistematicamente praticaram, e ainda continuam a praticar, este tipo de exploração, muitas das vezes associado à biopirataria. Aliás, o Brasil é um terreno fértil para este tipo de atividade criminosa, já que, como disse acima, o país abriga a maior megadiversidade genética do planeta.
Portanto, além de uma questão epistemológica, o conhecimento dos povos tradicionais é uma questão de soberania nacional. Quiçá, de soberania cognitiva de um país. Isso evidentemente passa pela necessidade de pensarmos nossos próprios problemas epistemológicos, éticos e políticos. Como nas canções de Gilberto Gil. Isto é, precisamos ser filosoficamente autodeterminados se quisermos realmente pensar as questões que verdadeiramente nos interessam.
É claro, uma agenda decolonial (ou contracolonial) tem tomado destaque nos últimos anos dentro do debate acadêmico brasileiro. No entanto, há ainda muito chão a ser percorrido se realmente quisermos enfrentar aqueles que realmente ainda nos colonizam. No Amazonas, o departamento de filosofia criou uma linha de pesquisa de Mestrado voltada exclusivamente para o debate acerca do pensamento amazônico. Isto pode se tornar uma experiência muito frutífera se o programa optar por destacar o pensamentos dos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas da região. Neste ponto, já existe muitos trabalhos acadêmicos consolidados em outras áreas, creio que seja um momento oportuno para filosofia brasileira também entrar neste debate.



 

Bibliografia

Almeida, Mauro W. Barbosa. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. Ilha Revista de Antropologia, v. 23, n. 1, p. 10-29, 2021.

Almeida, Mauro W. Barbosa. Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCAR, v. 5, n. 1, p. 7-28, 2013.

Da Cunha, Manuela Carneiro. Cultura com aspas. Ubu Editora LTDA-ME, 2018.

 



[1] Como África do Sul, Bolívia, China, Colômbia, República Democrática do Congo, Costa Rica, Equador, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar, Malásia, México, Peru, Quênia, Etiópia e Venezuela.

Comentários