A ciência do outro importa?


Jaider Esbell - conhecimento e dignidade, 2012.


Neste pequeno artigo, irei tratar um pouco da relação entre ciência e outras formas de saber não necessariamente científicas; mas nem, por isso, socialmente vistas como simples charlatanismo. Todavia, haverá ainda aqueles epistemólogos mais severos que preferirão incluir todos os saberes não-científicos no mesmíssimo patamar não-epistêmico, denominando-os meramente de pseudociências, sejam esses charlatanismo ou não. Eu apresentarei aqui algumas boas razões para que não sejamos tão radicais em nossas afirmações epistemológicas. Para que não desqualifiquemos, por puro preconceito, saberes não considerados científicos ou de outras culturas não-ocidentais.
Com o termo "pseudociência", diz-se sobre atividades que abarcam um bojo de informações que não teriam o mesmo status daquelas consideradas propriamente científicas; ainda que, boa parte das vezes, manifestem alguma pretensão de nos informar sobre o que é o caso. É um tanto óbvio que essa definição bastante genérica não esclarece muita coisa. Entretanto, quando se fala de pseudociência, geralmente as pessoas remetem seu pensamento a práticas como astrologia, horóscopo, tarô, magia, pajelança, vodu, mandiga, ocultismo etc. Porém, alguns epistemólogos vão muito mais além, rejeitando não só essas práticas espiritualistas, mas tudo aquilo que não atende a preceitos metodológicos convergentes às ciências duras ou da natureza. Para essa separação, os filósofos da ciência vão propor um critério de demarcação, a fim de definir as fronteiras entre ciência e pseudociência. Neste sentido, o filósofo austríaco, Karl Popper, chegou inclusive a considerar a psicanálise e o marxismo também como pseudociências. Tendo em vista que, segundo ele, uma vez que não podem ser falseadas, tais teorias não podem ser submetidas a um adequado critério de testabilidade e, por isso, não podem ser consideradas legitimamente científicas.
Todavia, é importante ponderar que, a longo prazo, essa normatividade rígida pode tornar-se até mais perniciosa para o progresso da ciência e para sociedade do que essas ditas "pseudociências", ao salientar um ponto de vista assaz homogêneo e engessado sobre o que é conhecimento científico. Consequentemente, rejeitando prontamente outros tipos de saberes considerados não-científicos (embora socialmente bem estabelecidos), através um conjunto estreito de regras que podem até mesmo inibir a criatividade daqueles que estão encarregados de produzir a ciência das gerações futuras.
Em contrapartida, Feyerabend argumenta que as ciências historicamente se desenvolveram com suas próprias regras e métodos, de modo que jamais existiu, de fato, uma normatividade epistêmica idêntica para todas elas. Aliás, o projeto epistemológico-normativo de ciência é herdeiro de um ideal cartesiano, através do qual se supôs possível atingir um pretenso fundamento seguro e indubitável para todas as ciências. No entanto, esse ideal não tem levado em conta a capacidade humana de produzir, em diferentes épocas e lugares, uma diversidade de saberes satisfatórios ao menos aos seus propósitos práticos - alguns tomados como ciência, outros não necessariamente. Na verdade, o ideal de uma normatividade científica comum a todos aqueles que se dedicaram ou se dedicam à ciência nunca se concretizou ou precisou ser concretizado na realidade.
Ressalto que as chamadas "pseudociências" - mesmo aquelas que consideramos apenas puro charlatanismo - não necessariamente causam qualquer grande mal à sociedade e ao progresso científico. Não consta, por exemplo que, na história da humanidade, construiu-se a bomba atômica através de uma "pseudociência". Muito pelo contrário, boa parte das informações consideradas "pseudocientíficas" parecem circular somente dentro de um nicho de crenças socialmente marginalizadas que, por isso mesmo, estão muito distantes de ocupar qualquer papel de destaque dentro produção científica dominante. Além disso, muitas ideias que eram antes tomadas como "pseudocientíficas" passaram a ser vistas como ciência épocas mais tarde. Portanto, saberes minoritários não-científicos não podem ser visto, a princípio, como vilões só porque estão à margem do que é cientificamente consolidado. Do contrário, teríamos também de considerar importantes saberes tradicionais como meramente "pseudociências" e, porventura, marginalizá-los e excluí-los socialmente?


Centro de medicina indígena Barserikowi’i


A propósito, um caso importante ocorreu na cidade de Manaus, na qual existe, desde 2017, um centro de medicina, chamado Barserikowi'i, onde é oferecido tratamento indígena de enfermidades para todos os públicos. A ideia de um centro de medicina surgiu quando uma pequena menina indígena foi picada por uma cobra jararaca na perna direita e os médicos disseram aos familiares que a única saída era a amputação do membro [*]. Os parentes consideraram tal procedimento drástico demais, já que o tratamento indígena em conjunto poderia ajudá-la, mas a direção do hospital negou. Por fim, através de uma ordem do Ministério Público, os familiares conseguiram realizar o tratamento simultâneo em outro hospital. Um mês depois a menina já estava completamente curada e pôde voltar para a sua casa com sua família.

Links:


https://plato.stanford.edu/entries/pseudo-science/


https://plato.stanford.edu/entries/popper/


https://plato.stanford.edu/entries/pragmatism/



Por Wendel de Holanda

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