O mito como filosofia: breves considerações sobre o perspectivismo ameríndio

Jaider Esbell - "Conheça a ti próprio”, 2013

Mesmo que se reconheça certa descontinuidade entre filosofia e mito, ainda assim, não é tão óbvio onde está precisamente o ponto de ruptura que cindiria inequivocamente a filosofia de outros saberes não-filosóficos. De fato, a dependência da filosofia com relação à não-filosofia nos remete que talvez não haveria, dentre outras coisas, diferenças substanciais entre o discurso mítico e o discurso filosófico-conceitual, mas apenas uma espécie de "degradê" entre uma forma discursiva e outra.
É ao menos nesse sentido que o antropólogo Viveiros de Castro tem argumentado acerca do pensamento ameríndio, tomando-o não apenas como um discurso mito-poético, mas, além disso, como uma genuína metafísica [i]. O antropólogo brasileiro afirma que os indígenas ameríndios são perspectivistas em sua maneira de pensar o cosmos, a si mesmos e os outros. Grosso modo, uma posição perspectivista assume que agentes - humanos e não-humanos -, são dotados de pensamento e veem a realidade conforme seus respectivos pontos de vista, através de seu modo de ser/estar no mundo. Vale dizer que nada disso conduz a um relativismo multiculturalista, uma vez que o pensamento ameríndio se configura, de forma mais profunda, a partir de uma visão cósmica não-antropocêntrica sobre a realidade e, com isso, subvertendo o velho jargão protagorista de que "o homem é a medida de todas as coisas...". Assim, os ameríndios veriam todos os seres da natureza - animais, plantas, rochas, espíritos etc - como dotados de consciência e intencionalidade; tendo, por conseguinte, seus respectivos pontos de vista como constituidores da (sua) própria realidade.
Assim, por exemplo, aquilo que nós, enquanto humanos, enxergaríamos como sangue, a onça ou jaguar veria simplesmente como cerveja ou caxiri. Vale notar que, no perspectivismo ameríndio, não é simplesmente a visão do sujeito que determina o que é o real, mas, antes disso, é a relação que se estabelece entre corpos que determina a visão sobre as coisas, de modo que a relação entre caxiri/onça ou sangue/humano implicaria não só numa mera diferença de concepções particulares, mas ontologicamente numa distinção entre mundos possíveis. Neste sentido, ao invés de um multiculturalismo, Viveiros de Castro prefere entender o pensamento ameríndio como um multinaturalismo.
Esta posição não está longe do que autores como Deleuze&Guattari, Nietzsche, Spinoza e Leibniz já professavam em seus escritos. Não obstante, Meillassoux (2012) tem oferecido objeções ao vitalismo imanente às posições perspectivistas que, segundo ele, devem ser encaradas também como uma forma de antropocentrismo, uma vez que estendem características humanas às próprias coisas, configurando-se como uma espécie de “subjetivação do real”.[ii] 
Trata-se, conforme Meillassoux, ainda de um tipo particular de filosofia subjetivista que funde a objetividade do mundo com a subjetividade humana. É claro que as objeções de Meillassoux partem de uma posição que, de certa forma, ainda está apoiada na oposição entre mente e mundo, muito similar ao materialismo de Locke a respeito das qualidades primárias e secundárias.
Todavia, apesar dessas objeções, o ponto é que o perpectivismo ameríndio consiste, antes de tudo, numa proposta de olhar o mundo numa relação não verticalizada entre o “eu” e o “outro”. Neste sentido, não há o privilégio do “eu” como quem vê. Ao contrário, há, antes de tudo, uma consideração cósmica do olhar, isto é, quem justamente olha, o eu ou o outro, não está mais definido de antemão de forma a priori, tal como pretendia o idealismo transcendental no tocante à relação entre sujeito/objeto. Este ponto é bastante crucial no perspectivismo e, em particular, no perspectivismo ameríndio. Portanto, neste caso, vemos uma ruptura com o dualismo, mente-corpo ou mente-mundo, substituindo-os por uma perspectiva horizontal, sem qualquer menção a um sujeito epistemicamente privilegiado.
Neste sentido, no perspectivismo ameríndio, não há também uma hierarquia de seres, vê-se que o "eu" e o "outro" estão num mesmo plano de imanência. Há o que talvez Viveiros de Castro chame, em referência a Lévi-Strauss, de pensamento selvagem. Algo que ele frequentemente endossa com outras palavras, "a metafísica indígena tem um rompimento entre transcendência e imanência" e é, por isso mesmo, simultaneamente, transcendente e imanente. Por conseguinte, vale reiterar, não há uma relação verticalizada entre mente e mundo, donde consequentemente se supõe uma neutralidade imanente à matéria. Pelo contrário, como dito acima, os seres do mundo têm sua própria "humanidade", isto é, não estão destituídos de uma "alma", de uma "mente" ou de uma "consciência" ou "intencionalidade".
No mais, Viveiros de Castro já declarou que "a filosofia é a nossa mitologia”, no sentido de que a ruptura com o mito nada é senão a narrativa fundante do pensamento filosófico. Diante disso, ele nos diz que "o objetivo de tornar o mito comparável à filosofia, é de tornar a filosofia comparável ao mito, não para rebaixá-la ao mito ou vice-versa". O grande propósito é, então, o de "ligar a nossa mitologia [a própria filosofia] às mitologias indígenas". Disso resulta uma conclusão muito interessante: "o conceito, aí eu discordo do Deleuze, é uma forma da figura, porque tudo é figura". Essa afirmação sobre Deleuze refere-se ao capítulo "geofilosofia" da obra O que é filosofia, onde Deleuze&Guattari apontam o conceito como algo pertencente a um plano de imanência, enquanto a figura - hexagramas, mandalas, yin yang etc - pertenceriam a um plano de transcendência (em referência às tradições de pensamento não-ocidentais). O enunciado de Viveiros de Castro, em tom quase monístico, "tudo é figura", consiste em fundir os dois planos supracitados: o pensamento metafísico com o pensamento mítico.
Não obstante, o caminho aí trilhado, no qual as operações lógicas do pensamento são indistintas das imagéticas, não levaria todo pensamento lógico-conceitual se dissolver ao simulacro mito-poético? Onde os princípios mais gerais do entendimento não exerceriam qualquer autoridade? Isso não reduziria todo o pensamento humano aos “voos da imaginação”? Com efeito, Viveiros de Castro talvez diria que tais questões ainda pressupõem o “eu” epistêmico como exercendo um papel privilegiado no processo cognitivo. Algo que, do ponto de vista xamânico, não importa se se considera que o processo cognitivo seja individual, tampouco social, mas importa que seja, antes de tudo, cósmico
Ademais, a proposta de Viveiros de Castro é interpretar filosoficamente as figuras míticas, traduzindo-as em termos conceituais. É claro que nunca se pode ignorar os riscos de tradução de uma linguagem a outra, mas ele argumenta que é possível controlar tais equívocos de tradutibilidade. No fundo, o que está em jogo em apresentar o pensamento indígena em termos filosóficos não é de somente filosofar com o mito, mas antes de compreendê-lo como uma ferramenta de decolonizacão do pensamento.
Todavia, não se pretende aqui esgotar as questões em torno do pensamento ameríndio, mas somente convidá-los a conhecer um pouco mais sobre ele, não para tentar decifrá-lo em sua totalidade, mas antes porque através dele podemos perceber os limites do nosso próprio pensamento, ao qual fomos orientados ao longo dos séculos e que provavelmente, hoje em dia, há muito do que superar. 
Por fim, vê-se que o mito ameríndio pode significativamente contribuir para construção de um pensamento filosófico brasileiro original, se assim for, é claro, o desejo de quem trabalha com filosofia no Brasil. No entanto, num meio intelectual de herança e de mentalidade largamente colonial, cuja filosofia é, ainda hoje, majoritariamente construída por meio da exegese de cânones estrangeiros e cujo pensamento de autores brasileiros é quase inteiramente negligenciado, obviamente que ainda não é uma tarefa fácil, ao menos num sentido institucional ou acadêmico, pensar o mito em sua acepção filosófica, tampouco a filosofia numa perspectiva decolonial em sua radicalidade.

Por Wendel de Holanda



[i] Em conferência de encerramento do Seminário “Variações do Corpo Selvagem" (2015). As referências a Viveiros de Castro são todas falas desta conferência.

[ii] Iteração, reiteração, repetição - Uma análise especulativa do signo desprovido de sentido. In: https://revistas.ufrj.br/index.php/eco_pos/article/view/20491.


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