1969.
A Europa tem os olhos fixos sobre a guerra do Vietnã, a catástrofe
do Biafra, os sobressaltos de maio de 68, os primeiros passos do
homem sobre a lua. Com todo o frenesi dos Trinta Gloriosos1,
o Velho Continente não iria deixar um vírus azedar o ambiente. Ele
então desvia o olhar dos hospitais e de seu lote de misérias.
Contudo, estes cidadãos contam os mortos.
Tudo
culpa da gripe de Hongkong, também chamada de gripe de 68, o ano
onde ela apareceu na Ásia. Fim de 1968, o vírus desembarca nos
Estados Unidos, fazendo mais de 50000 vítimas em três meses. Começo
de 1969, ela desembarca na Europa, observa uma pausa estival antes de
provocar uma hecatombe entre 1969-70: 35000 mortos na França em dois
meses. Ela não evita mesmo a Grã-Bretanha e ultrapassa até a
cortina de ferro.
Citado
pelo jornal Libération num artigo escrito
em 2005, um médico nicês2
se lembra: “As pessoas chegavam em macas, num estado catastrófico.
Elas morriam de hemorragia pulmonar, os lábios cianosados3,
cinzas. Não se tinha tempo de retirar os mortos. Amontoavam-lhes
numa sala ao fundo do serviço de reanimação. E lhes retiravam
quando se podia, durante o dia ou à noite.”
A
gripe de 68 matou por volta de um milhão de pessoas, segundo
estimativas da OMS e se eleva assim sobre o pódio macabro de gripes
do século XX mais assassinas depois da gripe espanhola (20 a 40
milhões de mortos em 1928-20) e a gripe asiática (2 milhões de
mortos em 1957).
O
último presente de natal
Contudo,
nem as autoridades, nem o público, nem a mídia se preocupam. Bem ao
contrário, o tom é leve, mesmo ligeiro: “Um apresentador de
jornal televisivo fala da gripe de 1968 como do último presente de
natal que fez milhões de doentes e algum mortos” conta Bernardino
Fantini, historiador da medicina. A imprensa não é exceção.
As
reações ao extremo inverso daquelas de hoje, onde a atualidade é
dissecada, retransmitidas e às vezes reduzidas na máquina das
mentiras das redes sociais. Há também fatores angustiantes que não
existiam em 1969. Georges, um valaisão4
de 78 anos, se lembra: “Nós não tínhamos nenhuma recomendação
particular e nem estatísticas sobre o número de mortos da parte das
autoridades. Era um bom tempo onde mesmo perigos iminentes passavam
despercebidos pelo comum dos mortais.”
Mesmo
a morte de pessoas idosas se tornou um escândalo
Como
explicar uma tal transformação social no espaço de 50 anos, onde
se passa da indiferença ao terror coletivo? Certamente, ali se
tratava de uma gripe virulenta e não de um vírus desconhecido, e
sua velocidade de propagação era menor. Mas estes episódios
revelam mesmo assim mudanças profundas, tocantes a nossa relação
com a morte, a nossas capacidades, nosso individualismo: “Esta
mudança de atitude social é primeiro ligada a esperança de vida,
explica Bernardino Fantini. Na época, os com mais de 65 anos eram
considerados como sobreviventes da mortalidade natural. Enquanto que
hoje, mesmo a morte de pessoas idosas se tornou um escândalo”
Por
conseguinte com o individualismo crescem os direitos fundamentais: “O
direito à saúde, firmado pela OMS, ganhou esse status nas
consciências nos anos 1980, prossegue o historiador. Sentido como um
direito pessoal, ele deve portanto ser assegurado pelo Estado.
Enquanto que, nos séculos precedentes, a morte era aceita: se morria
de guerra, se morria por Deus, ninguém ali se assustava.”
Além
do mais o ser humano procurava as causas das doenças. Bernardino
Fantini fez um inventário de diferentes causas levantadas por nossos
ancestrais da Idade Média para explicar a peste negra: a punição
divina, é claro, mas também os astros - uma má conjunção entre
Marte e Vênus - as zonas pútridas, a vingança de inimigos, o
contato com animais, que foi aliás desembocar na perseguição de
gatos. Mas a despeito da pesquisa dos culpados, o fatalismo
permanecia um refúgio.
O
fatalismo começa a declinar com o Iluminismo, relegando Deus e a
providência: “A disputa entre Rousseau
e Voltaire6
sobre o terremoto de terra em Lisboa é reveladora, lembra Dominique
Bourg, filósofo e professor honorário na Universidade de Lausanne.
Rousseau, recusando o fatalismo, prefigura a modernidade. Esta se
instala definitivamente na sociedade ocidental do pós-guerra.”
O movimento iniciado também
foi apoiado pelo advento dos antibióticos após a Segunda Guerra
Mundial: "Antes, a tuberculose e outras doenças eram
consideradas inevitáveis porque eram incuráveis",
explica Bernardino Fantini. A varíola, quando na época das
epidemias matava duas em cada cinco crianças. A morte atacava sem se
importar com a idade ".
Em
alguns anos a perspectiva mudou inteiramente. Se passou da
resignação ao excesso de confiança. O principal momento de mudança
é o ano de 1979, onde a OMS declarou a varíola erradicada. Desde
então, o ser humano se sentiu capaz de vencer as doenças. Uma
profissão de fé que o HIV destruiu, e depois o Ebola. O coronavírus
é o último prego plantado no caixão dessa ilusão.
No
entanto a sociedade precisa repensar sua relação com a morte.
“Depois da guerra, com a desaparição da mortalidade infantil e a
progressão do conforto, o Ocidente desenvolveu pouco a pouco a ideia
de um capital de existência garantida, explica Dominique Bourg. Se
pensa que somente a negligência de outrem pode vos levar a arruinar
este capital.”
Daí
as reações muito fortes dos governos que impõem confinamento. É a
consequência de um imperativo sem precedentes na história da
humanidade: salvar a todos? Crítico do liberalismo, o filósofo
duvida e alerta: "Nos anos 90, também apareceu um cinismo que
consistia em afirmar que parte da humanidade poderia desaparecer sem
danos. O neoliberalismo é o darwinismo total. Se a onda neoliberal e
populista se espalhar, essa visão poderá prevalecer em alguns anos.
"
Ainda
não estamos lá. Mas já estão sendo ouvidas vozes para garantir
que as conseqüências do colapso econômico sejam mais mortais que o
vírus.
"Nossa
época não suporta mais derrotas, ofensas ou obstáculos"
Professor
de filosofia em um ginásio liberal e valdense7,
Enzo Santacroce vê o confinamento como uma ambição quase
prometeica8:
"Essas medidas de precaução resultam do orgulho em permanecer
senhor, de querer erradicar a morte e o sofrimento da condição
humana. realidades que hoje são intoleráveis, mas que ainda eram
intoleráveis em 1968. " Mesmo que, para isso, seja
necessário colocar a economia em espera, como uma penitência.
É
ainda mais difícil no século da "euforia perpétua", uma
tese de Pascal Bruckner lembrada pelo professor: "Nossa era não
suporta mais fracassos, ofensas ou obstáculos. Desde o Iluminismo,
que pensava que a felicidade na Terra era possível, passamos ao
imperativo de ser feliz. O coronavírus é um golpe do destino
experimentado como uma ofensa.
Na
verdade, sentimos que às preocupações com a saúde se acrescenta
uma ansiedade mais profunda, talvez decorrente dessa ameaça de uma
felicidade que acreditávamos ter adquirido. "É preciso, então,
se lembrar, com Blaise Pascal, que há grandeza em reconhecer que
somos pequenos e que a ameaça também pode levar à busca de
soluções", conclui Enzo Santacroce. De uma ilusão
contemporânea que está chegando ao fim, pode ressurgir uma resposta
filosófica muito rapidamente esquecida.
* Observação: A matéria “quando a Europa desdenhava de epidemias” foi publicada no jornal suíço “Le temps” (o tempo) no dia seis de abril de 2020, em francês. Título original: Quand l’Europe se moquait des épidémies. Link da matéria: https://www.letemps.ch/suisse/leurope-se-moquait-epidemies Tradução de André Gomes
__________________________________________________________
1
Os trinta gloriosos designam o período de forte crescimento
econômico e de melhora das condições de vida que conheceram a
grande maioria dos países desenvolvidos entre 1946 e 1975.
2
Cidadão da cidade francesa de Nice.
3
Coloração azul, às vezes negra ou lívida da pele, produzida por
diferentes afecções (perturbações circulatórias). Comum nos
lábios de cadáveres.
4
habitante da região de Valais, na Suíça
5
O século das Luzes foi um movimento filosófico, literário e
cultural vivenciado pela Europa do século XVIII (de 1715 a 1789) e
que se propôs ir além do obscurantismo e promover o conhecimento.
Filósofos e intelectuais incitaram a ciência por meio de trocas
intelectuais, oposição à superstição, intolerância e abuso por
parte de igrejas e estados. O termo "Iluminismo" foi
consagrado pelo uso por reunir a diversidade de manifestações
desse conjunto de objetos, correntes, pensamentos ou de
sensibilidades e de atores históricos.
6
Em 1 de novembro de 1755, um violento terremoto, seguido de uma
inundação, destruiu a maior parte de Lisboa, matando várias
dezenas de milhares. O evento, que ocorreu no auge do Iluminismo,
foi amplamente discutido pelos filósofos europeus e inspirou
profundas reflexões sobre os temas da teodicéia (Θεοũ δίκη,
justiça de Deus). O evento será, em particular, o motivo de uma
violenta controvérsia entre dois filósofos franceses,
François-Marie Arouet de Voltaire e Jean-Jacques Rousseau, cada um
defendendo sua própria visão do acaso, do risco e dos chamados
desastres naturais. Enquanto Voltaire acusava o acaso e a infeliz
combinação de circunstâncias, Rousseau insistia - e não sem uma
pitada de ironia - que a decisão de construir uma cidade costeira
em uma zona de terremoto era de responsabilidade exclusiva do homem.
7
Valdense: Os valdensianos (também conhecidos como valenses) são um
movimento ascético cristão.
8
Prometeu, herói grego. Quando Zeus oprimiu os homens e os privou do
fogo, Prometeu roubou para eles o fogo do céu, ou da forja de
Hefesto (deus artesão e ferreiro), e lhes ensinou várias artes.
Zeus puniu-lhe a rebeldia mandando Hefesto acorrentá-lo a um
rochedo inacessível no monte Cáucaso, onde uma águia, vinha
devorar-lhe diariamente o fígado; mas como Prometeu era imortal,
sua víscera refazia-se à noite. Essa tortura prolongou-se por
tempos imemoriais, até que Prometeu foi libertado por Héracles.
Prometeu é o emblema da humanidade, marco de quando o homem através
da razão (filho de Métis, deriva seu nome dela, deusa da astúcia)
conseguiu se diferenciar dos hábitos dos animais e através do fogo
passou a dominar a natureza através da técnica.
Comentários
Postar um comentário