Ciência, negacionismo e pós-verdade

René Magritte - "Decalcomania"


O problema destas discussões na web, que travam uma verdadeira cruzada contra o negacionismo científico, é que entre aqueles que retroalimentam crenças anticientíficas, nem sempre parece estar tão claro e inteiramente em jogo destituir a ciência do papel que ocupa em nossa sociedade. Grupos negacionistas frequentemente defendem suas teses como se essas fossem ciência e até mesmo mesclam afirmações científicas em suas respectivas "teorias".  Além disso, de modo algum, tal posição requerida por negacionistas é, por exemplo, equiparável ao que é demandado por autores pós-estruturalistas ou pós-coloniais. O propósito do negacionismo é outro, visto que, a negação do que afirma a ciência - ou, como dizem, a ciência do “establishment” -, tem sido não só um meio bastante eficaz para aglutinar rebanhos na internet, mas, além disso, para alimentar uma disputa ideológica dentro de um quadro consolidado pelo ambiente de pós-verdade que se instaura nas redes sociais e, por consequência, fora dela.
Neste contexto, negacionistas e entusiastas da ciência são atores de um mesmo palco, atuando para a proliferação de suas respectivas visões de mundo antagônicas entre si, ao menos aparentemente. Portanto, quem combate o negacionismo dificilmente está combatendo uma mentira em nome da verdade, mas, muitas vezes, acaba somente tentando sobressair sua ideologia em detrimento da outra. A razão disso é bastante óbvia: não conhecemos tanto assim sobre ciência. Quem se partidariza tanto pela ciência assume uma devoção ideológica e cega a ela, pois, em geral, não é um conhecedor profundo dela.
Na realidade, há um vasto número de ciências particulares, com variedade de métodos e procedimentos sofisticados que exigem formação qualificada a longo prazo. Ainda assim, essa formação não garante qualquer visão ou dogma sobre a realidade. Pelo contrário, cientistas ou iniciados em ciência adotam visões que, na maioria das vezes, são compartilhadas pela própria cultura adquirida ao longo de sua vida e não somente pelo seu curso científico. A ciência não cria seitas ou ideologias cientificistas, mas são grupos que não entendem o seu limite e escopo que tendem a exagerar suas capacidades.
Aliás, essa é uma das razões pelas quais a discussão política atual tem incorporado um número significativo de pautas que vão muito além das mais tradicionais. As pautas ou demandas políticas têm se tornado frequentemente um produto das redes sociais e nem sempre estão diretamente conectadas a uma visão crítica dos problemas que precisamos enfrentar no dia-a-dia. Elas são sobretudo provenientes de algoritmos através dos quais nossas emoções e crenças são diariamente atiçadas. Além disso, não há uma preocupação genuína com avalição de crenças por meio de valores universais e base científica. Vale dizer que estas preocupações não são apenas desconsideradas por negacionistas, mas até mesmo pelos próprios entusiastas da ciência, visto que ambos os lados, por diferentes caminhos, sobrepõem sua ideologia aos fatos.
Em última análise, no contexto da pós-verdade, o que importa mais é a formação do rebanho e não a coerência do sistema de crenças compartilhado entre seus membros. Neste ponto, a questão está muito mais em seguir o aglomerado que propriamente em acreditar piamente em todas as crenças ali pregadas. Alguém, inserido nesse meio, pode perfeitamente agir em conformidade com tal grupo por razões que não estão claramente explícitas nas ideias ali compartilhadas. A vantagem política disso é bastante óbvia: por mais que este sistema de crenças pareça, em princípio, sectário e fechado, ele se torna, dentro das redes sociais, expandido porque, dada sua capilaridade, tal sistema não se reduz a uma visão particular de uma seita, pois é, além disso, capaz de formar um agregado bastante vasto, ainda que contraditório e incoerente entre suas partes, mas, por isso mesmo, incorpora uma legião de seguidores na internet. É claro, não é por adesão racional que um indivíduo se torna parte de um sistema de crenças como este, ainda que precário, e sim pela condição periférica que ocupa com relação ao conhecimento científico institucionalizado, seja defendendo-o, seja rejeitando-o.
Neste sentido, diferentemente de outrora, quando a disputa política estava mormente baseada num conjunto de pautas específicas ou fechadas em certos princípios - e um tanto "chatas" ao paladar político recente -, não é exagero dizer que qualquer acontecimento que tenha potencial de ser vastamente compartilhado nas redes sociais torna-se logo um alvo de polarização entre estes grupos antagônicos. Neste ponto, a tese pós-moderna das relações de poder parece ser mais real - e até caricatural - que Foucault e Deleuze teriam imaginado. Diria que vivemos numa distopia pós-moderna, no sentido de que as microrrelações de poder de antanho ganharam agora dimensões macroscópicas com este "bum" das redes sociais. É neste ambiente agonístico que se retroalimentam e proliferam crenças tanto para o lado a quanto para o lado b. Trata-se aí das condições de possibilidade da pós-verdade. Não porque a verdade não importa mais, mas porque a verdade não dá "like" e nem "seguidores". Portanto, essa nova política disputa o público e a audiência, contudo não necessariamente a verdade. A verdade talvez esteja assaz circunscrita a um grupo muito pequeno e seleto de pessoas para formar algum rebanho - ou mesmo não esteja nas mãos de ninguém.
Entretanto, com relação à micropolítica das redes sociais, o rebanho é uma peça fundamental. É aí que o pensamento liberal perde: para tentar refutar um sistema de crenças é preciso supor que tal sistema seja coerente e tenha reais pretensões de verdade. Porém, neste caso, não se nota nenhuma dessas características. A narrativa predominante da internet é a do convencimento dos já convertidos. É mais fácil reforçar, instigar e orientar uma crença que propriamente mudá-la. O resultado disso é, sobremaneira, a intensificação dos antagonismos e a proliferação ainda maior da agenda ideológica destes grupos, sejam esses negacionistas ou não.

Por Wendel de Holanda

Comentários

  1. Boa análise de aspectos de uma condição enormemente complexa e difícil de abarcar em sua completude. Importante é também compreender que ela não é nem aleatória na sua origem e nem segue caminhos do mesma forma. O negacionismo está ancorado na forma econômica a partir da qual nós tomamos decisões. O discurso científico, argumentativamente justificado é o contrário disso. Complexo, com graus crescentes de dificuldade, em uma tempo e em uma sociedade marcados pela velocidade da produção e pela necessidade e centralidade do consumo. A convicção, se mostra então como produto mais sugestivo e adaptado à realidade desta dinâmica. Ter posições lapidares, respostas prontas e afastar-se rapidamente de complexidades é até mesmo uma postura adaptada ao tempo que mencionei acima, entretanto não necessáriamente uma recomendável.
    Intelectuais, cientístas, por outro lado, são complexos, demandam tempo, são "contra-produtivos". Esta mensagem é bombardeada todos os dias e em todas as sociedades de forma subliminar e expressa a não suspeita com relação às sínteses jornalísticas de minutos, nos folhetins sensacionalistas ou na expertise decorrente do número de seguidores. O horizonte da pós modernidade é bastante complexo e a unidade que muitas vezes é atribuida a ela não é real. Quando Lyotard fala da condição de um tempo que não mais acredita nas meta-narrativas, ele não propõe um tempo da não verdade, mas indica um tempo de compreensão da significação da criação simbólica. Eu acho que precisamos entender isso para pensarmos em alternativas, mas não creio que alguma forma de retorno ou restituição de estados seja possível.

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