A geopolítica do mito

Natureza Morta - Denilson Baniwa, 2017

Diferentes áreas das humanidades (filosofia, antropologia, ciências sociais, estudos literários, etc) têm mostrado que a superação do mito pela filosofia e pela ciência nada mais é do que uma narrativa eurocêntrica criada ao longo da história da filosofia. Essa suposta ruptura ocorreria no momento em que, dentro da cultura ocidental, o discurso analítico-conceitual se instaura como sendo a melhor forma de explicação da realidade, fundado em princípios racionais, alternativamente às narrativas mito-poéticas, como de Homero e Hesíodo, amiúde consideradas como maneiras fantasiosas de explicação da realidade.
É bastante reiterado, por exemplo, a tese associada à filosofia platônica de que o conhecimento dos poetas são como sombras projetadas dentro de uma caverna escura, sendo, assim, o mais baixo nível de apreensão das coisas. Grosso modo, o mito nos ofereceria tão somente a “cópia da cópia” da realidade, por meio de imagens e alegorias das coisas sensíveis que, por sua vez, seriam réplicas das formas inteligíveis acessíveis apenas ao intelecto [i]. Neste sentido, Platão estaria nos dizendo que o mito nos permitiria apenas um acesso remoto e frágil da realidade tal como ela é. Tal tese platônica é bastante representativa no que se refere à maneira pela qual a cultura ocidental relegou ao mito uma posição inferior com relação à filosofia e à ciência. 
Tal narrativa moderna sobre o conhecimento, além de eurocêntrica, não tem lastro em outras culturas e carrega consigo uma ideologia autoritária de caráter cientificista e tecnocrática, ao supor que a ciência não só poderia oferecer respostas a questões que ultrapassam o seu próprio limite e escopo; mas, além disso, ignora que a humanidade, não só em outras épocas, mas também em diferentes lugares, se baseia em diversos tipos de saberes satisfatórios aos diferentes modos de existência do planeta Terra e que não requerem e não requereram qualquer aval de cientistas ou especialistas ocidentais. Ora, mesmo que reconheçamos uma notável descontinuidade entre filosofia, ciência e mito, ainda assim, é importante considerar os pontos de entrecruzamento desses saberes. O que, de maneira especial, tem sido o recente debate interdisciplinar acerca do pensamento mítico amazônico.
Possíveis objeções podem afirmar que a ideia aqui sustentada contribui para um negacionismo científico. Todavia, não é difícil notar que estes grupos negacionistas assumem formas estereotipadas do que seria a ciência e a não-ciência. Vale dizer que não se nega aqui a ciência, não obstante, nossa principal preocupação é outra: denunciar o negacionismo acerca de saberes não-científicos. Em particular, o mito. Busca-se compreender o lugar do mito num mundo onde o conhecimento científico é a forma de saber hegemônico. 
Em seu contexto histórico-social, o mito está vivo e presente em parte significativa de seus respectivos povos. Não obstante, o mito se dá enquanto uma forma de saber desviante com relação à ciência moderna, uma vez que a produção dessa última se situa em seus respectivos departamentos universitários e centros de pesquisa, sobretudo, do Norte global. Estes espaços hegemônicos do saber é precisamente onde o mito, em tese, não está (ao menos não como conhecimento da mesma forma que a ciência).
O mito não se prestaria ainda ao cientificismo de qualquer espécie, aberto ou velado, consciente ou ingênuo. É preciso reconhecer que o quase-lugar do mito transborda os limites da ciência, de modo que equivaler o mito à ciência não traria qualquer benefício a ambos. Ao contrário do conhecimento científico, o mito não tem uma epistemologia no sentido estritamente ocidental, através da qual pudesse ser avaliado em termos de verdadeiro ou de falso. 
Vale dizer ainda que a questão de entender as condições cognitivas vinculadas ao mito tem sido um problema caro à antropologia, embora pareça ser da própria natureza do saber mítico se esquivar ou mesmo não se curvar ao paradigma moderno que amiúde busca adequá-lo a estes critérios cognitivos. Ainda assim, não é difícil concordar que há algo de metafísico no mito e de mítico na metafísica e que, da mesma maneira, pensar a filosofia e a ciência como totalmente distintas do mito equivaleria a rejeitar a metafísica subjacente a todos esses tipos de saberes.
Assim, surge-nos o incômodo com as narrativas que defendem, de forma velada, a ideologia cientificista e tecnocrática que aponta sobretudo a ciência como inequivocamente superior a todas as outras formas de saberes produzidas pela humanidade. Como se a ciência tivesse se desenvolvido de forma completamente autônoma, sem que nunca tivesse dependido do senso comum, da filosofia e do próprio pensamento mítico.
É importante considerar que a diferença entre saberes institucionalizados, como a ciência e a filosofia, e o não-institucionalizado, como o mito, não pode ser visto a partir de um critério filosófico de demarcação. O mito não é uma ciência, mas nem, por isso, passa a ser uma pseudociência. 
Neste sentido, de acordo com Platão, o discurso mítico é uma atividade cujo propósito se dá de uma forma muito diferente de uma descrição fidedigna dos acontecimentos, tendo em vista que consiste em relatos que já não é mais possível saber o que de fato ocorreu; não obstante, seu conteúdo não passa a ser, por isso mesmo, uma pura mentira. Em outros termos, contar o mito consiste em falar sobre coisas que já não é mais possível saber se são verdadeiras ou falsas, visto que o mito não é meramente o testemunho de uma experiência pessoal, mas trata-se ainda de uma narrativa de um ou mais povos, contada inúmeras vezes que, ao passar do tempo, não poderia estar imune de prováveis alterações [ii]. 
Em certo sentido, o mito talvez esteja além da mentira e da verdade, quer dizer, numa zona nebulosa entre ambas e, consequentemente, não teria também um lugar preciso ou claramente definido, ao menos não num sentido estritamente científico ou epistemológico, uma vez que o “ganho cognitivo” do mito parece ser de outra ordem, por assim dizer, de uma natureza metafisicamente ampla.

Por Wendel de Holanda

[i] PLATÃO.  Livro VII. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.

[ii] BRANDÃO, Jacyntho. O mito como terceira espécie de logos. In: O sagrado, a arte e a filosofia. Organizador por Renata Tavares e Everton Grein. Editora Liberars. Volume 2, 1ª ed, 2013, p.15-23.



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