“Dois Papas”: entre a razão e a fé



Cartaz do filme "Dois Papas"

Há uns três anos atrás, quando assisti "Dois Papas" (2019) de Fernando Meirelles, fiquei tentado em escrever algo sobre o filme. A trama mistura ficção e realidade, ao desenvolver um impressionante diálogo fictício entre as duas mais recentes e principais lideranças católicas: o carismático cardeal Jorge Bergoglio (o atual Papa Francisco), e o ex-Papa Bento XVI (o recém-falecido Bispo Joseph Ratzinger). No entanto, à época, não consegui desenvolver um texto que, de fato, parecesse com uma resenha crítica. 
Minha ideia era publicá-lo como primeiro post deste blog, mas o texto estava longo demais e precisava ser enxugado. Foi assim que criei meu primeiro post "A pós-verdade da fé e da razão", desenvolvendo um tema filosófico que me parecia o fio condutor do enredo do filme de Fernando Meirelles. 
Naquela ocasião, retirei todas as menções sobre o filme. Porém, recentemente reli o texto e achei que poderia compartilhar aqui com vocês, já que, nele, busco apresentar argumentos de como podemos viver uma religiosidade sem necessariamente surfar nesta onda conservadora que atualmente se alastra pelo mundo.

Segue-se, abaixo, o texto:

Resolvi aproveitar este início de ano para escrever sobre razão e fé, levando em conta o contexto atual da política brasileira. Escrevo talvez bastante inspirado na forma brilhante que esses temas são abordados no recente longa-metragem “Dois Papas” (2019) dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Mas não abordarei nada especificamente sobre o filme, irei somente tratar da relação entre fé e razão dentro do catolicismo e apontar algumas diferenças importantes com relação ao conservadorismo - de considerável apelo à fé religiosa - que tem se alastrado na vida política brasileira.
Sabe-se que uma das características importantes da teologia católica, desde o período medieval, está no modo de tomar a razão como base de sustentação da fé religiosa. O que é, por conseguinte, inteiramente diferente da narrativa adotada pela mídia ou das redes sociais que tendem dissociar, de um lado, as obras da técnica e da ciência como sendo produtos genuínos da razão e, de outro, a fé religiosa como algo amiúde associado a um campo quase que inteiramente distinto da racionalidade.
Essa dissociação entre fé e razão parece ser grosseiramente assimilada por essa nova onda conservadora e reiteradamente insuflada no interior das redes sociais. Aliás, a cultura moderna ocidental é historicamente marcada por essas narrativas acerca da falência da razão no que diz respeito à sua capacidade de sustentação de crenças e de valores que orientem os seres humanos nas sociedades atuais. Essa crise da razão não deixa de estar associada ao contexto recente do que chamamos de pós-verdade.
Nas redes sociais, não importa tanto o quanto você esteja racionalmente justificado a defender uma crença, mas o quanto de seguidores você é capaz de aglutinar em torno dela — sua verdade ou falsidade é somente uma questão secundária. Há muitos ganhos não só econômicos, como também políticos, nessa capacidade de formar rebanhos. Neste contexto, ideias extravagantes ou exdrúxulas ganham mais destaque do que aquelas de rigor metodológico ou científico.
Esse quadro parece reforçar que o conservadorismo em voga se retroalimenta das situações propiciadas pelas redes sociais de compartilhamento de ideias e notícias, muitíssimas das vezes, pouco embasadas, embora com bastante potencial de serem seguidas por um grande número de usuários na internet. 
Mas o que precisamente este fenômeno da pós-verdade tem a ver com a fé religiosa? O ponto é bastante simples: sabemos que a proliferação de ideias e notícias sem qualquer embasamento sólido também repercute dentro de seguimentos religiosos e mais conservadores da sociedade. No contexto da pós-verdade, o apelo à fé religiosa é uma poderosa ferramenta de disseminação de fake news. Disso resulta uma fissura incomensurável entre razão e fé, tendo em vista que, neste caso, as emoções são sobrepostas à avaliação racional.
Com isso, fica claro que esse contexto de pós-verdade é um ambiente bastante fértil e favorável à proliferação de concepções políticas conservadoras, cujas ideias bem embasadas são desprestigiadas ou substituídas em favor de crenças ou preconceitos arraigados na sociedade. Neste sentido, esse conservadorismo parece associar-se muito bem a essa cisão entre razão e fé que, por sua vez, flerta ainda com esse novo contexto de pós-verdade e de crise da razão.
Porém, esses pontos são bem distantes de posições importantes do catolicismo sobre fé e razão, uma vez que ambas, na doutrina católica, não são vistas como instâncias irreconciliáveis. Ao contrário, na CARTA ENCÍCLICA FIDES ET RATIO, João Paulo II não só critica o uso da razão sem apoio na fé , mas também ressalta os riscos da fé sem apoio na razão:


A razão, privada do contributo da Revelação, percorreu sendas marginais com o risco de perder de vista a sua meta final. A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. Da mesma maneira, uma razão que não tenha pela frente uma fé adulta não é estimulada a fixar o olhar sobre a novidade e radicalidade do ser. (http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html)

Enquanto que o conservadorismo em voga flerta bastante com a premissa secularista de que haveria uma profunda cisão entre fé e razão; a doutrina católica aponta um elo fundamental entre ambas. João Paulo II nota também que esses pontos estão em paralelo com importantes passagens bíblicas:

A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8–9; 6362, 2–3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2). (Ibidem)

Todavia, o conservadorismo em voga, longe de sustentar qualquer apoio da fé sobre a razão (e vice-versa), permite paradoxalmente uma completa submissão da fé à racionalidade instrumental do capitalismo, da ciência e do secularismo. Por isso, enquanto que, no catolicismo, a busca pelo “sentido da vida” não está alheia à pesquisa racional; nesta onda conservadora, constata-se que a fé é cega, além de ser constantemente capturada por grupos que a usam como instrumento a fim de se manterem no poder. 
Esses pontos parecem ser muito claros quando consideramos o perfil do governo Bolsonaro.
O atual Ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem defendido reiteradamente um programa para o ensino médio estritamente técnico, sem qualquer “viés ideológico” e, sobremaneira, atacando disciplinas de ciências humanas, especificamente, Sociologia e Filosofia , cujas contribuições para o conhecimento humano evidentemente não resultam em produtos de natureza estritamente técnica.
Além disso, tal discurso tecnicista e cientificista não se dá, no entanto, meramente dentro do terreno da educação, mas também serve de base ideológica ao debate econômico brasileiro de viés neoliberal, encabeçado pelo Ministro Paulo Guedes, e reforçado também pelos principais veículos de comunicação do país.
Porém, o rumo de uma sociedade requer decisões que vão muito além da estrita racionalidade técnico-científica. Não se pode escolher, por exemplo, somente com base num cálculo econômico quem deve pagar o maior ônus da reforma previdenciária ou tributária. Afetar os mais pobres em benefício das camadas mais abastadas da sociedade não é uma escolha que tecnocratas estariam isentos de responsabilização. Fica claro, então, que o anticientificismo e o irracionalismo propalado por membros do atual governo convivem, na realidade, muito bem com o tecnicismo e o cientificismo secular; neste caso, a neutralidade técnica em nada poderia se opor ao despudor da vigarice humana.

II

O ponto é que, ao contrário do catolicismo, o bolsonarismo vincula-se a essa racionalidade incapaz de responder sobre qualquer questão fundamental da vida humana; geralmente apelando a um mero discurso simplório de confrontação à esquerda que, não obstante, ignora completamente as diferentes matizes de expressão religiosa da sociedade brasileira, muitas das vezes, em nome de um cristianismo abstrato. A fé, então, é submetida a uma mera tutela paternalista, apoiada por um pacto cego e pueril de confiança que, no entanto, atenderia somente o interesse pragmático de suas respectivas lideranças político-religiosas.
A despeito das pautas lamentáveis que se mantém dentro da Igreja Católica, dentre elas, a defesa contrária à descriminalização do aborto e do casamento homossexual. Ainda assim, flertar com a onda conservadora que se instaura no Brasil pode se tornar um ônus ainda muito maior, sobretudo, por conta da leniência de um passado recente sobre casos de pedofilia envolvendo não somente padres, mas também parte significativa da hierarquia da Igreja Católica. 
Por isso, a Igreja Católica passa atualmente por um processso de reavaliação profunda de suas posturas (ao menos espera-se!), sem contar o apoio aberto a respeito de pautas sociais ligadas à esquerda brasileira; como, por exemplo, a reforma agrária e a defesa dos direitos das populações indígenas. Por essa razão, penso que o catolicismo ainda pode promover, de maneira genuína, uma resistência ao bolsonarismo, não somente pelos seus fiéis à esquerda do espectro político, mas pela insubordinação no uso da fé religiosa como um mero instrumento de um cálculo instrumental de ascensão ao poder. 
A propósito, num excelente debate “O cisma do século XXI” entre Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger, dentre outros pontos discutidos, o ex-Papa enfatiza o mesmo problema com relação à insuficiência da razão moderna de produzir algum ethos capaz de direcionar a humanidade num projeto ético comum, além de reconhecer a necessidade da fé religiosa e da razão de se mitigarem mutuamente, propondo um caminho promissor entre ambas:

Nós vimos que há patologias na religião que são extremamente perigosas e que tornam necessário encarar a luz divina da razão como um, por assim dizer, órgão de controle, a partir do qual a religião sempre deve se deixar purificar e organizar novamente, o que foi, aliás, também a noção dos padres da igreja. Em nossa reflexão, porém, mostrou-se que também há patologias da razão (do que, hoje em dia, a humanidade em geral não tem exatamente consciência), uma hybris da razão, a qual não é menos perigosa, ao contrário, devido à sua potencial eficiência, muito mais ameaçadora: a bomba atômica, o homem como produto. Por isso, por outro lado, a razão também deve ser lembrada em seus limites e aprender a disposição de ouvir as grandes tradições religiosas da humanidade. Quando ela se emancipa completamente e coloca de lado essa disposição de ouvir, essa capacidade de correlação, ela se torna destruidora. Eu falaria de uma necessária correlação entre razão e fé, entre razão e religião, as quais são convocadas para uma purificação e salvação recíproca, que se carecem mutuamente e que precisam reconhecer isso. (http://www.cella.com.br/conteudo/conteudo_76.pdf)

Por fim, ao contrário de um discurso paternalista sobre a fé, que faz vista grossa às patologias da religião e de ser conveniente com a tomada de decisões injustas sob o pretexto da “isenção” ou da imparcialidade técnica - disfarçando, assim, qualquer necessidade de compromisso ético e político. Ratzinger aponta para um caminho do meio, sob o qual razão e fé devem estar em recíproca purificação, de modo a contribuírem fundamentalmente para o bem da vida humana.

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