Médico - Peste Negra |
Muito se escuta que a visão
moderna ocupou quase que totalmente o espaço que antes parecia pertencer
exclusivamente às formas antigas de compreensão da realidade, no sentido de que
talvez agora uma postura mais pragmática e objetiva sobre o mundo se impõe,
pela sua eficácia, à vida hodierna. Todavia, após cinco meses de confinamento
social, essas abstrações parecem apenas nos aborrecer e tampouco conseguem
alimentar qualquer expectativa positiva com relação a um futuro pós-pandêmico.
O que nos obriga, diante da gratuidade dos acontecimentos e da morte iminente,
a assumir uma posição menos ingênua sobre a realidade, como aquela talvez
compartilhada pelas doutrinas helênicas e pelo cristianismo antigo [1].
O avanço científico-tecnológico,
bem como a progressão do bem-estar social e a erradicação das doenças,
produziu, em nossa cultura moderna, um entusiasmo temerário com relação à nossa
sobrevida na Terra [2]. Por conta disso, criamos muitas falsas expectativas
sobre nossas ações e decisões; sem considerar que, entre o dia de hoje e o de
amanhã, há um amplo número de variáveis que escapa inteiramente do nosso
controle. Aliás, mesmo em países extremamente desiguais, onde a maior parte da
população sobrevive em condições insalubres, não se pode negar ao menos que
essas expectativas existem e são, diuturnamente, encorajadas e estimuladas.
Não obstante, ainda que nossa
visão secular pareça triunfar diante das formas antigas de compreensão do
mundo, amiúde tomadas caricaturalmente como meras superstições do passado, é
evidente que muitas outras falsas expectativas, algumas até piores, também
foram forjadas em torno da vida moderna. Em contrapartida, o cristianismo
antigo e as principais doutrinas helênicas – epicurismo, estoicismo, ceticismo,
cinismo – tinham uma preocupação genuína pelo bem-viver que não equivale
meramente ao acúmulo de bens materiais, de poder, de dinheiro e de vantagens
pessoais.
Ao contrário, um aspecto muito
interessante dessas doutrinas antigas consiste na resignação e na paciência em
lidar com acontecimentos fortuitos e inesperados da vida. Nessas
circunstâncias, não há receita de bolo, padrões ou algoritmos que possam nos
oferecer uma via de mão única, pois, embora fosse mais reconfortante, para nós,
ter respostas prontas, fáceis e simplórias, devemos reconhecer que nem sempre
essas soluções existem ou são eficazes para lidar com as vicissitudes da vida.
A pandemia, o confinamento social, a morte iminente, a austeridade econômica, o
desemprego e a expectativa sombria sobre o nosso futuro pós-pandêmico
apresentam-nos um quadro assustador sobre nossa realidade. Todavia, antes de
cedermos inteiramente a essa condição desalentadora, é importante ainda
considerar de que maneira é possível lidar com ela, sem que essas adversidades
nos esgotem por completo.
Diz-se, por exemplo, que os
primeiros cristãos buscavam atingir as virtudes cardinais – prudência, justiça,
fortaleza e temperança – a partir do auxílio das virtudes teologais – fé,
esperança e caridade. As primeiras são qualidades da inteligência e da vontade
humana e guiam a nossa conduta segundo a razão: “Se alguém ama a justiça, o
fruto dos seus trabalhos são as virtudes, porque ela ensina a temperança e a
prudência, a justiça e a fortaleza” (Sb 8, 7). As segundas, auxiliares das
primeiras, têm como propósito imediato a própria fé: “Agora permanecem estas
três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade”
(1 Cor 13, 13). Essas são, portanto, as sete virtudes cristãs que, reunidas,
conciliam a sabedoria moral e a fé religiosa [3].
Farei aqui uma comparação
grosseira entre o cânone moral do catolicismo, fundado na fé e na razão, e o
jogo entre cálculo e expectativas que mobilizam o homem moderno a adquirir
“habilidades” práticas em função do trabalho. De ambos os modos, estamos diante
de uma relação entre o lado racional e o irracional do ser humano. Nesse
sentido, parece que a ética antiga foi substituída pelo pragmatismo individual.
Não que seja evidentemente pecado criar expectativas sobre os resultados
práticos de nossas ações ou decisões pessoais. Todavia, refiro-me a isso como
um modus operandi que se generaliza para quase todas as nossas
práticas cotidianas. Trata-se, pois, de um dogma que contaminou todos os
lugares, inclusive os templos religiosos. Se o conservadorismo chegou a apontar
a ciência e o secularismo como substitutos da religião no mundo moderno,
acrescento aqui outro sentido à acusação: religiosos ou não, não desejamos mais
a vida póstuma num paraíso celestial como recompensa de nossa ascese
espiritual. Ao contrário, crenças como essas são bem menos atraentes diante das
novas expectativas de cura, da erradicação de doenças e da progressão do
bem-estar social. Isso talvez esclareça por que algumas formas de
espiritualidade estão principalmente plasmadas numa espécie de “ascese” baseada
no trabalho duro e reiterado, em vista de ganhos mais imediatos e terrenos.
Em outras palavras, aprendemos
a quantificar os níveis de incerteza sobre o futuro, de modo que nos tornamos
capazes de avaliar os diferentes graus de expectativas que podemos depositar
numa dada ação em vista de obter algum lucro. Assim, equipados com essa
ferramenta que nos permite fazer previsões quase-certas sobre o porvir,
acrescentamos o importante papel da ciência para o nosso cálculo de benefícios,
como um saber idealizado que poderia nos oferecer um recurso inteiramente
eficaz – ainda que pretensamente –, a fim de eliminar qualquer tipo de
imprecisão, para qualquer novo impasse.
Entretanto, essa total
confiança é agora posta em xeque pelo advento inesperado da pandemia global, de
modo que nossas expectativas positivas sobre o futuro diminuíram drasticamente
ou tornaram-se completamente irreais e ilusórias. Se, no cristianismo antigo,
as virtudes cardinais – prudência, temperança, justiça e fortaleza – eram
fundações sólidas de nossas ações, sobre as quais apoiávamos racionalmente a
nossa fé religiosa, modernamente essas bases foram completamente implodidas, e
não é de se estranhar que estejamos agora sem qualquer chão. Aliás, talvez isso
explique um pouco sobre nossa idolatria pela ciência.
Em tempos de pandemia buscamos,
principalmente na ciência, respostas prontas para nossas aflições. Mais que
isso: exigimos dela uma solução prática, eficaz e rápida. Não obstante, os
algoritmos, os métodos, as quantificações, as “técnicas para”, são todos agora
colocados em total embaraço. Aliás, penso que o conhecimento científico se
converteu em nosso paradigma civilizatório não propriamente porque atingimos
finalmente as luzes da razão, assim como sonhavam os filósofos iluministas do
século XVIII. Mas, pelo contrário, criamos um entusiasmo cego na ciência que
transcende seu próprio escopo. Em outras palavras, o excesso de expectativas
que temos sobre o conhecimento técnico-científico tornou-se, de um modo
paradigmático, a nossa pseudociência.
Por isso, uma maneira de
aproveitar melhor o conhecimento proveniente da ciência, passa, antes de tudo,
pelo seu processo de desmistificação. No entanto, de um lado, temos os
entusiastas da ciência, redentora do progressismo carcomido e, de outro, temos
os negacionistas científicos como baluartes de um conservadorismo subletrado.
No fim das contas, de ambos os lados, subsiste a mesma visão simplória do nosso
passado e do nosso futuro [4].
Contudo, não parece verossímil
que as pessoas sejam ingênuas a tal ponto. De fato, ninguém seria tão bobo a
ponto de acreditar, por exemplo, que o trabalho reiterado da ciência na
imunização da espécie humana signifique meramente um pacto ético pela vida, visto
que essa tarefa aponta ainda para a obsessão por nossa sobrevida na Terra.
Somos, portanto, somente acráticos quando nos tornamos assaz dependentes das
promessas que foram feitas em nome da ciência. Alimentamos em nós a mesma
vaidade de Sísifo ao tentar enganar a morte, mas talvez não seja um exagero
dizer que pagamos com a alma por esse ideal, uma vez que compramos nossa
imunização pelo esquecimento de quem somos. Aliás, para os antigos helênicos,
não pensar a morte é o mesmo que não refletir.
Longe de ser uma saída
meramente austera e impraticável, a resignação dos antigos significava nada
mais que uma postura de indiferença diante das coisas que não temos qualquer
controle. Isso nos permite redefinir, com bastante precisão, o nosso verdadeiro
campo de ação. Neste ponto, não se deve compreender a resignação pela chave do
conformismo e da apatia, mas sim como condição para ações mais eficazes perante
a vida e o mundo.
De fato, a pandemia nos faz
vacilar diante de nossa fé moderna: a promessa do bem-estar social e da cura de
todas as doenças já não pode garantir qualquer vantagem diante da morte
iminente e da realidade crua do capitalismo mundial. Como meros mortais, somos
sempre perdedores com relação ao nosso destino. Por outro lado, a quarentena
pode significar um momento de reavaliação de nossas ações e decisões, assim
como uma oportunidade para o exercício da resignação e da paciência e, por
conseguinte, do cuidado, da generosidade e da empatia para com os outros.
Links:
[1] “A adivinhação no mundo helenizado
do segundo século”. Link: https://revista.classica.org.br/classica/article/view/579/558.
[2] “Quando a Europa desdenhava
de pandemias” Laure Lugon, tradução André Gomes. Conferir: https://interfaces-filosoficas.blogspot.com/2020/06/traducao-da-materia-jornalistica-quando.html
[3] Catecismo da Igreja
Católica, terceira parte. Conferir: http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s1cap1_1699-1876_po.html.
[4] A pós-verdade da fé e da razão. Conferir: https://interfaces-filosoficas.blogspot.com/2020/01/a-pos-verdade-da-fe-e-da-razao.html
Gostaria de ressaltar o que entendi de suas palavras resumidamente (se vc achar que tô viajando e quiser comentar, fico grata): nossa sociedade no geral se apoia na muleta que ela crê ser ciência, mas que se torna pseudociência justamente por tamanha crença - paradoxo. Apoiada nesta muleta tendemos a não mais refletir e tomar princípios básicos de uma boa convivência social, de modo que acabamos mais por reproduzir um interesse que vc chamou de sobrevida na Terra... Tenho visto "todo mundo" querendo voltar "ao normal", isto é, superar a pandemia e retomar seus cotidianos a viver como sempre viveram; falta pensar se é queremos mesmo essa normalidade de sempre, a reproduzir hábitos que impossibilitam a Vida.
ResponderExcluirMe chamou atenção a frase "Somos, portanto, somente acráticos quando nos tornamos assaz dependentes das promessas que foram feitas em nome da ciência." Não sei se posso concordar com ela visto que existem ácratas que consideram a metafísica, como por exemplo, Tolstói, entre outros. Então, talvez seja sim possível ser ácrata e ter aquela base helenística que vc comentou pra gente... e mesmo crer em Deus, por exemplo - uma vez ouvi dizer que Bakunin no fim da vida reconheceu a existência de Deus... nunca fui atrás pra ver se é verdade, mas não me espanta essa possibilidade.
Gostei muito de vc nos lembrar que a resignação pode ser entendida como diferente da apatia. Talvez dê pra dizer que ela é o mesmo que a "não-ação" budista, ou seja (bem rasamente!), agir dentro de altos princípios morais.
Vlw pelo pertinente texto e pela atitude do escrever filosófico nesses tempos que parecem ser de pouca reflexão, por mais saturninos que estejam sendo... Força! <3